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Paulo Freire

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A idade das palavras | Revista Língua Portuguesa

A idade das palavras | Revista Língua Portuguesa


Assim como os seres vivos, as palavras também envelhecem. Alguns vocábulos tornam-se melhores com a idade, adquirindo cada vez mais significados e popularidade, ao passo que outros acabam caducando, praticamente sumindo do vocabulário ou sobrevivendo com sentidos distintos do original.

É consenso entre os estudiosos da linguagem que o tempo imprime sinais específicos na língua. Esses sinais, assim como as rugas no rosto de um ancião, fornecem pistas importantes sobre a existência linguística das palavras. São traços que se manifestam sob as mais diversas formas - desde a ortografia datada de tempos idos, que denuncia a escrita de uma época; passando pela variação de significados de uma mesma palavra ao longo das décadas e por termos que caíram em desuso junto com os objetos a que davam nome; até o uso estilístico de arcaísmos e grafias antigas na literatura, entre outros "passadismos" que, paradoxalmente, fazem parte do presente do idioma.

O fascínio com a idade das palavras parece crescer a uma velocidade diretamente proporcional aos avanços da vida contemporânea. A impressão é que a obsolescência de muitas palavras começa a ocorrer em períodos de tempo cada vez menores, sobretudo em tempos de internet, em que modismos surgem e somem do dia pra noite.

ColecionadorFoi assim, por exemplo, que o jornalista Alberto Villas começou a coletar termos, gírias e expressões caídas em desuso. A ideia de publicar Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta - Palavras que Sumiram do Mapa (Editora Globo, 2012) lhe ocorreu ao perceber que seus filhos não entendiam algumas palavras que ele dizia em casa.


O jornalista e escritor Alberto Villas, autor do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta: quinquilharias linguísticas
Sem pretensões científicas, como um fashionista vai a brechós ou um colecionador zanza por antiquários, Villas consultou revistas das décadas de 50 a 70, bem como pessoas mais velhas do que ele, atrás de matéria-prima lexical. Seu livro padece de limitações (os verbetes "bituca" e "guimba", por exemplo, se anulam, cada um remetendo ao outro como seu substituto), mas tem a impulsividade charmosa das seleções mais ou menos aleatórias, com palavras obsoletas, gírias fora de moda e sentidos caducos, outros nem tanto.

- Fui buscar palavras a partir dos anos 50, que foi quando nasci. Costumo brincar que, se fosse buscar palavras desde o início do século passado, só o Oscar Niemeyer e a Dona Canô, mãe do Caetano Veloso, iriam lembrar - brinca Villas.

Além de gírias características de épocas e movimentos, a curiosidade de Villas recaiu sobre termos (ou sentidos) que desapareceram - ou estão por desaparecer - juntamente com os objetos a que dão nome.

- Acho curioso palavras que sumiram junto com o progresso da tecnologia. "Datilografar", por exemplo. A máquina de escrever desapareceu e a datilografia foi junto. "Colchetes", "ilhós", "opaca", "popeline" estão sumindo porque as costureiras que costumavam ir em casa fazer roupa também estão desaparecendo. O meu critério foi colocar no dicionário palavras que ouvimos nos últimos 60 anos - explica.

Ciclo de vidaO escritor Braulio Tavares, colunista de Língua, dá o exemplo de um site em inglês chamadoObsolete Skills [habilidades obsoletas, www.obsoleteskills.com/skills/skills], especializado em listar atividades que estão em vias de extinção. Com a tecnologia e a ciência avançando cada vez mais rapidamente, a lista não para de crescer. Segundo Tavares, frases e expressões engraçadas como "ajustar o pêndulo do relógio", "colocar a agulha no vinil" e "rebobinar a fita da locadora", entre outras construções inusitadas que o site reúne, têm mais serventia para um escritor que esteja produzindo um romance ambientado há 20 ou 30 anos. Afinal, não se trata de arcaísmos ou anacronismos, mas de atividades que, independentemente do nome que levem, foram abandonadas pela sociedade. 

Embora sejam abundantes os exemplos de palavras que caíram em desuso devido à obsolescência dos objetos que nomeiam, esses vocábulos não necessariamente somem ou desaparecem, mas se tornam menos frequentes, associados a contextos mais específicos. A Linguística de Corpus - que investiga dados linguísticos coletados segundo critérios específicos - determina a ascensão e queda de um vocábulo ao longo do tempo, bem como suas associações e seus contextos, ensejando conclusões acerca da "vida útil" de um termo.

- É possível calcular o "ciclo de vida" de uma palavra desde que o corpus esteja organizado por períodos de tempo, seja ano, década, ou algo assim. Um exemplo disso, em inglês, é o COHA (Corpus of Historical American English), criado por Mark Davies [http://corpus.byu.edu]. Mas eu enfatizaria que os corpora mostram mais a "agonia" de uma palavra do que sua "morte" propriamente dita, porque uma palavra pode sair de circulação mas ainda "sobreviver" isolada, por exemplo em certas comunidades ou em livros de referência - afirma Tony Berber Sardinha, professor de linguística da PUC-SP.

PopularidadeSe a Linguística de Corpus revela, sob perspectiva empírica, a popularidade das palavras, o acesso e o cruzamento de dados proporcionados pela internet tornaram esse método acessível a não especialistas. O Ngram Viewer [http://books.google.com/ngrams], do Google, põe à disposição 500 anos de evolução das palavras, passando em revista cerca de 500 bilhões de termos publicados entre 1500 e 2008 em inglês, francês, espanhol, alemão, chinês e russo (o português não está disponível).

A ocorrência do termo "neurosis" ("neurose") em língua inglesa, por exemplo, é traduzida pelo Ngram Viewer numa curva ascendente a partir de 1860 aproximadamente, atingindo um pequeno pico por volta de 1920 para, mais tarde, atingir seu ápice de ocorrências entre 1940 e 1960. Os dados gerados pelo sistema não deixam de fazer sentido - em termos empíricos, vale enfatizar - posto que os estudos de Sigmund Freud, pai da psicanálise, foram popularizados no começo do século 20 para só nos anos 50 e 60 serem absorvidos pela indústria cultural, como por exemplo no cinema de Woody Allen.

Desde os anos 60 e 70, contudo, observa-se uma derrocada da palavra, que se traduz por uma curva descendente no gráfico do Ngram Viewer. Tal queda pode ser reflexo do declínio da influência da psicanálise na cultura, além da concorrência de termos mais específicos para desordens mentais cunhadas pelos manuais de psiquiatria, relegando a neurose a um segundo plano. Pode ser que o sentido consagrado por Freud para a palavra "neurose" esteja vivendo, se não seu ocaso, um ofuscamento em relação a outras sinonímias. Não deixa de ser sintomático que "neurose" e "neurótico", por exemplo, tenham sido peculiarmente apropriados pelo Funk Carioca na década passada com o sentido de "louco, nervoso", batizando diversos "bondes" e manias musicais desde então.

- Muitas palavras aparecem e morrem como se fossem uma moda. Na época da Jovem Guarda, por exemplo, apareceram inúmeras. "Pra frente", "broto", "carango", "brasa", "mora"... E passaram junto com a moda. Na época dos hippies só se ouvia "falou, amizade", "vamos transar um artesanato", "é isso ai...". Hoje ninguém usa mais - lembra Alberto Villas.

Arcaísmo gírioNa língua falada, de natureza mutável por excelência, as gírias são o exemplo mais contundente da fugacidade do tempo. Se no registro escrito as convenções da norma culta garantem certa regularidade da expressão ao longo das épocas, na fala alguns sentidos e expressões surgem e desaparecem em questão de anos ou meses.


O poeta Glauco Mattoso: ortografia arcaica
Na maioria dos casos, as gírias se aproveitam de vocábulos já existentes para adicionar-lhes sentidos novos, em geral metafóricos, como em "broto" ou "brotinho", sinônimo de alguém jovem e bonito. Na botânica, de onde a palavra foi emprestada, "broto" designa os estágios iniciais de desenvolvimento de uma planta.

Dino Preti, linguista e professor da PUC-SP, lembra que o termo "bárbaro" sempre esteve associado a "cruel", "desumano", "grosseiro", mas que, a partir dos anos 60, ganhou a acepção de "ótimo", "muito bonito". O mesmo vale para a gíria "lagartixa", segundo Preti, que entrou para o vocabulário dos punguistas com o sentido de "fila de ônibus". Mais tarde, na fala dos presidiários, passou a designar "sentinela da guarita".

Muitas dessas gírias acabam decaindo e perdendo seu sentido criptológico (de camuflagem do sentido verdadeiro), cuja compreensão estaria restrita apenas ao grupo que a domina. Esse fenômeno demonstra que, em alguns casos, a gíria é uma etapa transitória, sendo vulgarizada pelo uso abusivo, tornando-se, posteriormente, um arcaísmo gírio.

Observadas em retrospecto, tais palavras constituem-se verdadeiras antiguidades linguísticas, anacronismos que não se alinham ou correspondem à língua posta em prática.

Há quem invista nesse desajuste entre o léxico atual e o de antigamente, isto é, naquelas palavras que nos remetem a usos e costumes de um passado que se expressa no idioma por significados e grafias outras. A exemplo de outras áreas da cultura, como a música, o cinema e as artes plásticas, que volta e meia bebem de águas passadas, a literatura também tem seus revivals e passadismos.

AnacronismosContudo, a literatura se manteve mais alheia que as outras artes à onda de "revivalismos", com exceção das reconstituições e dos romances históricos, cuja relação com o passado se dá sobretudo pelo tema e não propriamente na forma da expressão. Poucos escritores se arriscam a simular a forma antiga de escrever, temendo não serem entendidos por leitores contemporâneos.

Autores iconoclastas como o modernista Oswald de Andrade valeram-se de anacronismos ortográficos em sua poesia com resultados estilísticos interessantes, como no trecho "hospedagem", do poema "Gandavo" (Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, editora Globo, 2006), cuja grafia arcaica foi mantida por seus editores para preservar o efeito estético pretendido pelo autor:

Porque a mesma terra he tal
E tam favorável aos que vam buscar
Que a todos agazalha e convida

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